“A Leonor é mesmo um milagre”
Maria José ainda estava a amamentar a segunda filha quando sentiu uma pontada no peito. Depois, uma massa. A enfermeira pensou que podia ser da pílula e decidiu deixar de a tomar. Podia estar a criar nódulos, pensou, e como nunca engravidara naturalmente não hesitou. Pouco depois teve duas notícias que nunca esperou ouvir: estava grávida e a massa era, afinal, cancro. Esta é a história de Maria José, mas também a de Leonor que, ainda antes de nascer, deu a força que a mãe precisava e que nunca pensou ter. É uma história rara – o diagnóstico de cancro da mama na gravidez acontece apenas numa gravidez em cada 4 mil –, mas também de medo, de superação, de ansiedade e esperança. Desta história veio também uma certeza: é preciso saber falar de cancro. Sem cenários cor-de-rosa, sem “vai ficar tudo bem”, sem substituir a pessoa que sempre se foi pelo doente. É preciso falar de cancro porque faz parte da vida.
Imagino que se recorda de tudo do dia do diagnóstico. Como é enfermeira foi-se apercebendo? Não. Por norma sou uma pessoa pessimista, mas por incrível que pareça estava completamente à-vontade. Então, até estava grávida e tudo! Mas quando me pediram para fazer a ressonância magnética disse ao meu marido: “Alguma coisa não está muito bem para fazerem uma ressonância magnética numa grávida.” O meu marido, ao contrário de mim, é muito otimista. “Foi só para terem a certeza do que é”, disse. Quando fizemos a biopsia perguntei o que esperar. “As microcalcificações encontradas na ressonância podem ser benignas ou pode ser um cancro.” O resultado veio passado um ou dois dias. Lembro-me que o médico me ligou e disse: “Tenho boas e más notícias. A má notícia é que é cancro, um carcinoma in situ. A boa notícia é que é curável, está localizado.”
Disseram-lhe de imediato para começar os tratamentos? Sim e porque eu estava num estado de ansiedade muito grande. Antes de saber o resultado da biopsia já tinha lido o que se podia fazer nos casos de carcinoma in situ na gravidez. Foi logo: “Olha, tens isto, agora há que tratar.” O tratamento nestes casos costuma ser cirurgia conservadora da mama seguida de radioterapia, que eu não podia fazer porque estava grávida, por isso o tratamento passou então a ser uma mastectomia.
Pôs logo o piloto automático? Pus o piloto automático mesmo. E lembro-me de uma conversa depois da mastectomia quando me disseram que afinal não era um carcinoma in situ, mas que associado ao carcinoma in situ existia um cancro invasivo, ou seja, não estava confinado aos ductos e lóbulos mamários, tinha invadido outros tecidos da mama, o que implicaria ter, por isso, de fazer quimioterapia. Aí reagi. A médica disse-me: “Ainda bem que te estou a ver a reagir porque assimilavas a informação, dizias que sim, mas não tinhas emoções.”
Chorou? Chorei. Disse que queria ver as minhas filhas crescerem. E, em relação à Leonor que tinha na barriga, que a queria conhecer.
A fase da gravidez em que o cancro foi detetado foi determinante? Parece que foi tudo certinho. Quando se descobriu o cancro foi às 18 semanas. Se tivesse sido diagnosticado no primeiro trimestre se calhar a opção teria sido a interrupção da gravidez porque não podia fazer quimioterapia. E o parto foi antecipado para as 36 semanas. Apesar de às 36 semanas de gestação ainda ser considerado um bebé prematuro, já é uma idade próxima das 37 semanas em que já são considerados bebés de termo. Há a parte positiva de ser enfermeira mas também a negativa. A palavra cancro, que assusta tanta gente, a mim ainda assusta mais. Felizmente ainda estava num estádio muito inicial. Mas o medo de haver metástases estava sempre lá. Essa parte dos conhecimentos não era muito boa. Lembro-me que tinha umas dores na anca e estava a pensar que podiam ser metástases ósseas.
Sentiu que era importante ter alturas para desabafar? Muitas vezes precisava de falar e não precisava que as pessoas me dissessem “vai correr bem”. Eu sabia o que podia correr bem e o que podia correr mal. Só tinha necessidade de falar no assunto e muitas vezes as pessoas não entendiam.
Porque tinha quase de lhes dar apoio? Um bocado. Foi por isso que até optei por não contar a quase ninguém. Não contei à família do meu lado.
Achou que as pessoas não conseguiam lidar com essa realidade? Fui criada pela minha avó, que já tem alguma idade e é uma pessoa nervosa. Não queria preocupá-la e tinha a certeza que se contasse à minha mãe ela ia contar-lhe porque não ia conseguir não dizer. E tinha a certeza que, se soubessem, ia ter telefonemas todos os dias e não ia saber como lidar com isso. Depois havia a Beatriz, a minha filha mais velha, que tinha 7 anos. Falámos muito se havíamos de contar. Ficou decidido que não e que ia usar peruca.
Até quando manteve segredo? Até a bebé nascer e terminar os tratamentos. Sou de Amarante e a minha família está lá. Ou seja, não tinha aquela surpresa de eles aparecerem.
Continua a achar que foi a melhor opção? Sem dúvida. Voltaria a fazer o mesmo. Houve pessoas a quem contei. A amigas mais próximas; a algumas pessoas da família do meu marido, porque eu ia necessitar de ajuda. A Mafaldinha era praticamente bebé, tinha apenas dez meses. Mas a minha sogra não sabia. Optámos por não dizer… Quer dizer, eu optei. O meu marido questionava muitas vezes se estávamos a fazer o correto.
Disse que sentiu uma força que não sabia que tinha. Quando o percebeu? Não sei. O que eu sei é que no dia a dia lidamos com doenças oncológicas, que para mim são as piores, e sempre pensei que se tivesse de passar por isso não ia conseguir reagir. Quando me aconteceu, estava grávida, tinha uma filha de 7 anos, outra pequenina. Queria ver as minhas filhas crescerem, queria que as minhas filhas se lembrassem de mim.
O facto de ter tido uma gravidez não planeada também foi importante? Quando penso na Leonor, a Leonor é mesmo um milagre. Foi uma gravidez espontânea, nunca tinha sido, foi uma bebé que sobreviveu à quimioterapia e aos riscos da gravidez, eu já tinha tido um parto prematuro, a minha gravidez mesmo antes do diagnóstico de cancro já era considerada uma gravidez de risco. Penso muitas vezes que a pessoa acredita em Deus ou em algo com uma força maior e acho que me deram a gravidez para eu conseguir também ultrapassar a fase da doença. Acho que se não estivesse grávida, a força era completamente diferente. Tinha de pensar nela. Por isso não me podia deixar ir abaixo de forma alguma.
Como foi o nascimento da Leonor? Quando a vi cá fora foi um alívio, ver que era perfeitinha... Quando foi para casa foi uma sensação ótima.
Está quase a regressar ao trabalho. Como vai ser a enfermeira Maria José? Já estou há dois anos em casa. Tenho as miúdas pequeninas. Vai custar-me muito, mas também estou ansiosa porque quero voltar à minha rotina normal.
Como acha que vai lidar com pessoas que passaram pela mesma situação? Cada pessoa reage à sua maneira, mas acho que as pessoas têm de se agarrar a alguma coisa. Se eu disser “olha, vai correr bem, olha o meu caso”, isso pode dar força, mas a pessoa tem que se agarrar a algo. Claro que quando eu via casos de sucesso, ajudava. Mas tem de se ter alguma coisa por que lutar. Eu tinha as minhas filhas.
Essa força é essencial? Acho que todas as pessoas têm essa força. Não sou mais do que ninguém. Então eu que sou tão pessimista. As pessoas têm de encontrar a sua fonte de energia. O meu marido ajudou-me imenso mas não foi de me apaparicar. Ele sabia que eu não ia conseguir lidar bem com isso. Eu sou “bola para a frente”. Não é que o meu marido não seja uma pessoa meiga, mas ele não mudou e as pessoas a quem disse não mudaram a atitude. Sempre me trataram como se fosse a mesma pessoa e não como uma coitadinha. Isso para mim ia ser terrível. Ia afundar-me.
Quando publicámos a sua história no Facebook da Lusíadas, as pessoas falaram de coragem. O que sentiu? As pessoas acham que não iam ter a mesma coragem. É que não foi só ter um cancro da mama. Foi ter um cancro da mama na gravidez. Muita gente diz que sou uma lutadora, que tenho coragem, mas não me revejo nessas palavras. Mal elas sabem os medos que uma pessoa tem.
Dizem que os mais corajosos são aqueles que sabem o que é o medo. Também é verdade. Por isso é que digo que só agora é que notei uma força. Não vou dizer que não tenho medo, tenho muito medo. Quando terminei a medicação, para muita gente ia ser uma alegria ver-se livre de tudo, mas não foi o que senti. Depois, a falar com a médica, ela disse: “Sentes-te como um trapezista a trabalhar sem rede.” É exatamente isso. Enquanto estava com a medicação tinha um suporte. Agora estou por minha conta. Também mudei muita coisa. Era uma pessoa sedentária e agora comecei a fazer exercício físico. Associada ao cancro está a falta de exercício, a obesidade. Ainda não consegui mudar os meus hábitos alimentares, mas é uma coisa que quero muito. E uma coisa que eu digo a todas as pessoas é para fazerem exames e estarem atentas. Se eu não fosse uma pessoa atenta, não teríamos identificado tão cedo.
Por Patrícia Silva Alves Fotos Artur
Artigo publicado na primavera de 2017 na Revista Lusíadas n.º 7