Para além da COVID-19: as outras doenças
O primeiro caso de COVID-19 em Portugal foi diagnosticado a 2 de março de 2020. Desde então, muito mudou nos serviços de saúde, que tomaram medidas para melhor responderem às necessidades dos utentes, reduzindo ao máximo o risco de contaminação. No entanto, os dados evidenciam aquelas que são consideradas as consequências menos diretas da pandemia.
“Em Portugal pensa-se que metade da mortalidade em excesso ao longo deste ano tem a ver com doenças não relacionadas com a COVID-19: por exemplo, doenças cardiovasculares que não foram tratadas e doenças metabólicas, como a diabetes, descontroladas por dificuldades em aceder à medicação ou aos médicos. Apesar de tudo, ainda há muita gente em casa com receio de ir a uma consulta ou de aceder aos cuidados de saúde”, comenta Francisco Araújo, coordenador do Departamento de Medicina Interna do Hospital Lusíadas Lisboa.
“À semelhança de outras pandemias no passado, a infeção por SARS-CoV-2 demonstrou que os efeitos desta pandemia se estendem para além do número de internamentos e mortes
diretamente causadas pela COVID-19”, salienta o artigo científico “Covid-19 e Doença Cardiovascular: Consequências Indiretas e Impacto na População”.
Os números relativos às urgências são um dos indicadores que ilustram esta realidade: em março de 2020, os episódios de urgência em Portugal diminuíram 48% face ao que seria expectável. Entre 1234 pessoas que afirmaram ter necessitado de consulta médica, mais de metade (57,6%) não a teve, ou porque os serviços a desmarcaram (35,2%), ou por opção do próprio (22,4%).
Com a ajuda do médico internista Francisco Araújo, apresentamos-lhe as principais consequências indiretas da pandemia ao nível da saúde e apontamos o que pode e deve fazer para as evitar.
Ansiedade e depressão
O aumento de incidência da ansiedade e da depressão são duas das consequências mais evidentes da pandemia. Como relata Francisco Araújo, “os receios da COVID-19 e das suas consequências, em nós ou nos nossos familiares, tiveram repercussão. Num inquérito a 160 mil pessoas realizado em abril/maio, um quarto das pessoas que responderam disse que se tinham sentido ansiosas ou tristes todos os dias ou quase todos os dias. Há, de facto, um peso significativo deste componente, com alterações daí decorrentes que podem implicar risco de outras doenças: as pessoas tornam-se mais sedentárias e pode haver mais excesso de álcool, ou de alimentos, o que pode despoletar uma descompensação de doenças de base ou gerar outras patologias”.
O que fazer
Embora seja natural alguma ansiedade ou humor mais deprimido face ao contexto em que vivemos, estes problemas são considerados patológicos “se interferem com o bem-estar e o dia a dia das pessoas”, salienta o médico internista.
Neste caso, há um grande erro a evitar: recorrer à automedicação. “Estas situações requerem apoio profissional, seja de um psicólogo, psiquiatra ou do médico habitual”, sublinha.
Por outro lado, é possível atuar a um nível mais preventivo: “O problema é que se converteu o distanciamento físico num distanciamento do ponto de vista das relações humanas. Temos de tentar ultrapassar isso, falando uns com os outros e procurando ajuda quando precisamos. É preciso, desde logo, pedir ajuda a um familiar ou amigo e, depois, procurar ajuda profissional”.
Faltas a consultas
Apesar de todas medidas adotadas, ainda há muito receio de se contrair uma doença ao ir a um hospital, centro de saúde ou urgência. “É interessante perceber que, em março, houve uma queda de quase 50% do número de pessoas que iam ao serviço de urgência. Nas consultas de rotina também houve uma queda enorme, por duas razões: os cuidados tornaram-se prioritários para a COVID-19 e houve uma limitação de acesso; por outro lado, perto de 60% das consultas programadas não foram feitas e, dessas, cerca de 40% foram desmarcadas pelas próprias pessoas”, destaca Francisco Araújo.
Para inverter estas estatísticas, considera, é importante as pessoas perceberem que “existem alternativas, quer no Serviço Nacional de Saúde, quer nas instituições privadas, para minorar complicações, não só da COVID-19, mas de outras doenças”.
O que fazer
As medidas de higiene e segurança adotadas pelos serviços de saúde permitem assegurar as consultas e exames necessários, sem riscos para os doentes. “Temos o exemplo dos profissionais de saúde, que todos os dias se deslocam para essas instituições, muitos deles têm contacto com pessoas com COVID-19 e o nível de infeção é extremamente baixo. Portanto são locais seguros, todos os cuidados são adotados de forma a que possamos circular com baixo risco de infeção”, assegura Francisco Araújo.
No entanto, para os mais reticentes ou pertencentes a grupos de risco, há uma solução que pode servir de alternativa à consulta convencional: a teleconsulta. “Está indicada, sobretudo, em pessoas com doenças crónicas estáveis e é uma mais-valia. Claro que tem limitações: não há exame objetivo, que muitas vezes ajuda a tomar decisões clínicas; não há contacto pessoal nem medição dos parâmetros vitais. Mas permite manter um controle da doença muito melhor do que se, pura e simplesmente, a pessoa se ausentar. Mais vale uma videochamada do que nada”, pondera o médico internista, que salvaguarda: “É muito difícil um médico tomar decisões terapêuticas numa primeira abordagem quando não tem o doente à sua frente”, pelo que é importante já conhecer o médico quando se marca uma teleconsulta.
Doenças não tratadas ou diagnosticadas
Como consequência da pandemia, houve um subdiagnóstico de várias doenças graves e um aumento das formas de apresentação mais tardias. “Por exemplo em Itália, o número de AVCs (Acidente Vascular Cerebral) registados caiu de imediato, revelando uma redução dos diagnósticos. O número de enfartes também caiu na ordem dos 30% e o tipo de enfartes que chegava à urgência era mais grave porque as pessoas recorriam mais tarde aos cuidados, condicionando maior risco de complicações”, descreve Francisco Araújo.
Segundo o especialista houve também “uma diminuição de primeiros diagnósticos de situações neoplásicas” que terá “um impacto tremendo nos próximos meses”. Os atrasos estendem-se ao tratamento e ao seguimento de pessoas com doenças crónicas. “Várias intervenções foram adiadas: coronariografias eletivas, cirurgias programadas… O futuro dirá que consequências teve esta necessidade”, antecipa o especialista.
O que fazer
Em situações específicas, estes dados são consequência de mudanças na logística hospitalar, particularmente nos serviços de urgência, durante a fase mais aguda da pandemia.
Por outro lado, “denotam comportamentos de risco” que devem ser superados por parte dos doentes: “É preocupante que pessoas com doenças crónicas não estejam a ser seguidas de forma correta ou que pessoas com doença aguda não recorram, por medo, ao serviço de urgência ou a uma consulta do seu médico”, alerta o médico internista, apelando à confiança nos serviços de saúde.
“Não faz sentido nenhum, nesta fase, alguém com queixas evitar um possível diagnóstico. Sabemos, por exemplo, que muitas situações oncológicas têm cura ou um tratamento que permite uma vida prolongada e com qualidade. Neste momento, estão criadas todas as condições para as pessoas poderem ser vistas em segurança”.
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Revisão Científica
Dr. Francisco Araújo
Coordenador da Unidade de Medicina Interna