Imunoterapia: o que é e como funciona?
Além da radioterapia e da quimioterapia, existe um tratamento médico para o cancro que passa pelo uso das armas do próprio organismo para lutar contra as células tumorais. Essa técnica chama-se imunoterapia e serve-se do sistema imunitário para esse combate.
Mas como? Antes de avançar é importante esclarecer sobre como é que uma doença oncológica se desenvolve. Quando uma célula se altera a nível fisiológico e começa a multiplicar-se de uma forma descontrolada, podemos estar na presença do início de um cancro. Muitas destas células são ativamente destruídas pelo sistema imunitário e deixam de ser um problema. Um tumor que consegue desenvolver-se, significa que o sistema imunitário foi ultrapassado.
“As células tumorais têm a capacidade de usar 'formas de disfarce'”, diz Paulo Cortes, médico oncologista e coordenador do Centro de Oncologia do Hospital Lusíadas Lisboa. Com isso, “escapam à vigilância do sistema imunitário, vão crescendo e dão origem a vários tipos de cancro”.
A imunoterapia consegue reverter este processo de camuflagem e voltar a tornar o sistema imunitário apto para combater as células cancerosas. “É como se retirasse os travões ao sistema imunitário da própria pessoa, fazendo com que as células tumorais sejam mais facilmente reconhecidas e eliminadas”.
Sistema imunitário em ação
O sistema imunitário é amplamente conhecido pela defesa contra agentes patológicos que entram no organismo e podem causar doenças como as bactérias, os vírus, os fungos e outros parasitas. Mas no seu dia a dia, as células deste sistema realizam uma das suas funções mais importantes no combate às células tumorais.
“Há vários tipos de ‘células defensivas’: os linfócitos T, os linfócitos B e as células NK, com diferentes funções no combate às células tumorais. Algumas produzem substâncias, anticorpos, que neutralizam as células agressoras e outras que destroem diretamente as células tumorais”, explica Paulo Cortes.
No entanto, em alguns casos, as células tumorais contornam este ataque do sistema imunitário, impedindo que, por exemplo, os linfócitos T deixem de as reconhecer como sendo células agressoras ao organismo. Deste modo, as células tumorais ficam com o caminho aberto para continuarem a multiplicar-se, invadindo outros tecidos e, se nada for feito, levando à morte.
Além dos tratamentos clássicos, como a quimioterapia e a radioterapia, começou a surgir mais recentemente a imunoterapia (também apelidada de tratamento biológico ou imuno-oncologia), uma nova linha de tratamento, que se serve da própria máquina imunitária do organismo. “Na prática, é um tipo de tratamento que ajuda a estimular as ‘células defensivas’ do corpo a combater o cancro”, resume o médico.
As vantagens da imunoterapia
Ao contrário de outras técnicas anticancerígenas, a imunoterapia não atua diretamente nos tumores, mas sim no sistema imunitário. Por isso, ela tem o potencial de funcionar para qualquer tipo de cancro — ainda que a eficácia não seja sempre idêntica.
“Hoje em dia, a imunoterapia é uma estratégia incontornável no tratamento de vários tipos de cancro. Há múltiplos estudos clínicos, em vários tipos de cancro e em diferentes estádios da doença. Muitos deles têm demonstrado benefícios clínicos”, garante Paulo Cortes.
Cancros como o da bexiga, do cólon, o gástrico, o linfoma, o melanoma, do pulmão, do rim, podem ser alvo da imunoterapia.
Mas há outras vantagens. Enquanto a radioterapia e a quimioterapia acabam por ter efeitos nefastos em células saudáveis, a imunoterapia ataca de forma mais específica as células tumorais. Como resultado, reduz “o impacto negativo nas células saudáveis” e “evita efeitos secundários debilitantes que são inevitáveis noutras estratégias” no tratamento do cancro, diz o especialista.
Outro benefício é que a imunoterapia ataca não só as células tumorais que estão em evidente divisão, mas também as que estão a dividir-se lentamente e ainda em repouso. Em suma, “nalguns casos conseguem-se respostas clínicas muito duradouras, com redução do volume ou da extensão do tumor ou mesmo com o seu desaparecimento”, sublinha o oncologista.
Tipos de imunoterapia
De acordo com o tipo de cancro, o grau de avanço ou disseminação do tumor, existem vários tipos de imunoterapia indicados:
- Imunoterapia inespecífica
Usa moléculas — como os interferões e as interleucinas — que ajudam o sistema imunitário a destruir as células tumorais. Estas duas famílias de moléculas são produzidas naturalmente pelo sistema imunitário e têm várias funções na sua ação diária. No contexto da imunoterapia, “os interferões ajudam a combater o cancro e podem atrasar o seu crescimento” e as interleucinas “ajudam o sistema imunitário a produzir células que destroem o cancro”, explica o médico.
- Anticorpos monoclonais
Apesar de serem fabricados no laboratório, os anticorpos monoclonais usam o mesmo princípio que os anticorpos que o organismo produz naturalmente: identificam e agarram-se às proteínas que estão à superfície da membrana das células tumorais e neutralizam-nas.
Estes anticorpos podem também atacar as células que sustentam o crescimento das células tumorais.
- Vacinas para o cancro
“Há vacinas que podem prevenir o aparecimento de cancro, nomeadamente quando este está relacionado com um vírus — como, por exemplo, o vírus do papiloma humano (VHP)”, salienta o médico. Os investigadores estão também a tentar desenvolver vacinas que atuem depois de já ter havido um diagnóstico de patologia oncológica: Nestes casos, o objetivo é ajudar o sistema imunitário a reconhecer e a destruir o cancro já presente.”
- Imunoterapia ou imuno-oncologia
Para bloquear o ataque do sistema imunitário, as células tumorais ativam várias vias de regulação — como a PD-1, a PDL-1 e a CTLA4. Estas vias vão travar a ativação de “células defensivas” do sistema imunitário que, de outro modo, iriam sinalizar e combater as células tumorais. Ou seja, “quando estão ativas, bloqueiam a resposta imunitária”, diz Paulo Cortes.
A técnica de imunoterapia cria o efeito oposto: através de agentes desenvolvidos em laboratório (anti-PD-1, anti-PDL-1 e anti-CTLA4), inibem a ativação destas vias, deixando o sistema imunitário livre para atacar as células tumorais.
“Há ainda outros medicamentos que permitem ativar o sistema imunitário, atuando noutros pontos e vias de ligação”, acrescenta o especialista.
Como funciona o tratamento
A imunoterapia pode ser usada de forma isolada ou com outros tratamentos contra o cancro. A decisão depende do tipo de cancro, do avanço da patologia e também da fase do tratamento.
A técnica pode ser utilizada após a cirurgia para retirar o tumor, de forma a evitar que o cancro tenha uma recidiva, ou seja, que volte a aparecer. Isso acontece no cancro da bexiga, do esófago e no melanoma.
Em muitos outros cenários este tratamento é aplicado com outros, em diferentes combinações. “É possível combinar várias modalidades de imunoterapia (no melanoma, cancro do pulmão, do rim e do cólon), utilizar imunoterapia combinada com quimioterapia (no cancro do pulmão e gástrico), imunoterapia com terapêutica biológica dirigida (no cancro do rim) e imunoterapia combinada com radioterapia”, refere Paulo Cortes.
O processo clínico entre a primeira consulta até à implementação do tratamento decorre em vários passos. O primeiro surge quando há suspeita clínica detetada pelo doente ou pelo seu médico, bem como quando existe um achado clínico nas análises ou nos exames de rotina. Esta suspeita poderá obrigar a pessoa a realizar exames mais específicos para a deteção do tipo de cancro, a sua localização e a sua extensão.
De seguida, uma equipa interdisciplinar de médicos avalia o caso para definir qual será a melhor estratégia para o tratamento. Este pode passar pela cirurgia, radioterapia, imunoterapia, entre outros.
“Se a decisão for fazer imunoterapia, o médico oncologista fará uma avaliação clínica da pessoa e explicará as opções e os detalhes do tratamento, antes de este iniciar”, diz o oncologista. “A frequência de administração do tratamento varia de acordo com o agente de imunoterapia, o tipo de tumor, as condições clínicas do doente e as suas preferências.”
Os tratamentos são feitos com administrações periódicas, por via endovenosa. Estas administrações podem acontecer a cada quinze dias, a cada três semanas, podem ser mensais ou de seis em seis semanas. Não há necessidade de internamento. Ou seja, a pessoa dirige-se ao hospital, recebe o tratamento e vai para casa.
A duração do tratamento varia de acordo com o tipo do tumor e de acordo com a sua extensão. “Em casos de tumores localizados em que o tratamento é feito com intuito curativo para prevenir recidivas, pode durar um ano. Em casos em que o tumor já está mais disseminado, decorre durante mais tempo, desde que se verifique benefício clínico”, afirma Paulo Cortes.
Reações adversas
Antes de iniciar o tratamento com imunoterapia, “o médico oncologista fará sempre uma avaliação do quadro clínico geral da pessoa e decidirá se existem condições clínicas e se a melhor opção é o tratamento com imunoterapia”.
Os efeitos secundários da imunoterapia são muito diferentes dos efeitos associados aos tratamentos por quimioterapia e hormonoterapia (usada nos cancros que necessitam de hormonas para o seu crescimento, como o cancro da mama ou da próstata – nestes casos, a hormonoterapia passa pela inibição da produção dessas hormonas). No caso da imunoterapia, os efeitos secundários devem-se a “alterações provocadas pelo sistema imunitário em células normais”, explica Paulo Cortes.
Os efeitos secundários mais frequentes são alterações da pele – como a comichão ou erupções cutâneas, inflamação do intestino (colite), inflamação do pulmão (pneumonite), doenças inflamatórias da hipófise (hipofisite), inflamação da tiróide (tiroidite).
A hipofisite e a tiroidite podem prolongar-se ou mesmo tornarem-se crónicas. No entanto, o médico assegura que, “na maioria dos casos, a imunoterapia é bem tolerada”.
Em suma
A imunoterapia é uma nova arma terapêutica incontornável no combate ao cancro, que consegue excelentes resultados clínicos, em muitos tipos de tumores, e na maioria das vezes com muito boa tolerabilidade. A imunoterapia é um tratamento contra o cancro que ativa o sistema imunitário para que este ataque de forma mais eficaz os tumores. Há várias possibilidades de tratamentos que dependem do tipo de tumor e da sua extensão, mas que são na maioria das vezes bem tolerados pelo doente.
Ler mais sobre
Doenças OncológicasEste artigo foi útil?
Revisão Científica
Dr. Paulo Cortes
Coordenador da Unidade de Oncologia Médica