Serão tiques ou Síndrome de Tourette?
Piscar os olhos repetidamente, encolher os ombros, fazer movimentos faciais bruscos e pigarrear são alguns dos tiques que estão associados a pessoas com Síndrome de Tourette, uma perturbação do neurodesenvolvimento que surge em idade infantil e que pode ser um motivo de angústia, depressão e isolamento social.
Esta síndrome “resulta da disfunção neurológica em circuitos cerebrais que controlam as atividades motoras, sensoriais e emocionais”, explica a Unidade de Neurologia do Hospital Lusíadas Amadora. Apesar de os tiques serem a característica definidora da doença, apresentar apenas um destes comportamentos não é o suficiente para a síndrome ser diagnosticada.
Uma parte significativa de crianças que desenvolvem Síndrome de Tourette deixa de ter os sintomas à medida que entra na idade adulta. No entanto, muitas delas acabam por sofrer um grande impacto psicológico, causado não só pela ocorrência dos tiques, mas também pela reação das pessoas à volta.
“Vários estudos mostram que estes doentes são frequentemente vítimas de bullying e que os seus tiques podem provocar reações negativas nas outras pessoas”, alerta a neurologista. Mas há formas de gerar um ambiente mais saudável para quem sofre desta síndrome, ajudando no controlo dos tiques.
História e origem da Síndrome de Tourette
A síndrome Gilles de la Tourette foi identificada no século XIX pelo neurologista francês Georges Albert Gilles de la Tourette, que descreveu vários casos num artigo de 1895.
A doença caracteriza-se pela presença de vários tiques. Os tiques são movimentos que não são controlados ou desejados. Acontecem sem terem um objetivo e envolvem diferentes grupos de músculos. Surgem subitamente, duram pouco tempo, são repetitivos e têm um padrão definido. Encaixam em várias categorias: há tiques que são motores e outros que são vocais, há tiques que são simples e outros que são complexos.
O que está na base destes tiques ainda é pouco compreendido. Sobre a origem da doença, “vários estudos sugerem uma interação complexa entre fatores sociais, ambientais e genéticos”, refere Sandra Castro Sousa. No entanto, lembra a especialista, esta explicação também se aplica a muitas outras condições do neurodesenvolvimento, o que demonstra que o conhecimento sobre esta síndrome ainda é limitado.
Ainda assim, estudos realizados sugerem a existência de uma desregulação de circuitos cerebrais “responsáveis pela normal integração do movimento, das sensações e emoções, da atenção e do comportamento”.
A desregulação leva a um descontrolo do sistema motor e límbico que estará na origem dos tiques. Um dos componentes que tem sido associado a este descontrolo é a dopamina, um neurotransmissor cerebral importante na regulação da via motora.
Tiques simples e complexos
Dois pacientes com a síndrome Gilles de la Tourette podem ter tiques muito distintos, o que demonstra a grande variabilidade de sintomas entre indivíduos. No entanto, em todos os casos, existe sempre um fenómeno sensorial que precede os tiques, denominado “impulso premonitório”. Identificá-lo é o primeiro passo para controlar o comportamento.
Há ainda a distinção entre tiques simples e complexos. “Os tiques motores simples correspondem a movimentos breves, abruptos e rápidos que envolvem apenas um grupo de músculos como, por exemplo, piscar os olhos, sacudir a cabeça, encolher os ombros, fazer caretas”, descreve a médica.
Já os tiques motores complexos, “consistem em movimentos coordenados e sequenciados, semelhantes a gestos ou a atos motores inadequadamente intensos ou exagerados e socialmente inapropriados, como, por exemplo, saltar, fazer flexões, toques repetitivos, bater, chutar, curvar-se, girar.”
A pessoa pode também imitar os gestos de outros indivíduos, um comportamento designado por ecopraxia, ou pode ainda realizar tiques complexos e obscenos, ação identificada como copropraxia.
A nível vocal, também existe uma classificação idêntica. Os tiques simples correspondem a vocalizações como tossir, cuspir, pigarrear e gemer. Os tiques complexos, que surgem em 40% dos casos, passam por dizer palavrões (coprolália), repetir palavras (ecolália) e frases (palilalia).
Do tique à síndrome
Apesar de a síndrome ser caracterizada por tiques, ter um tique não significa que se tem a doença. É que “existe um espetro de perturbações de tiques distinto desta síndrome”, sublinha Sandra Castro Sousa.
“O diagnóstico da síndrome Gilles de la Tourette é clínico e resulta da combinação de tiques motores (pelo menos dois) e de tiques vocais (um ou mais), que ocorrem durante mais de um ano, surgindo antes dos 18 anos”, diz a médica.
A especialista indica contextos em que a presença de um tique não corresponde à Síndrome de Tourette:
- Tiques transitórios durante a infância, que duram menos de um ano;
- Quando há tiques crónicos, mas que não resultam da combinação de tiques motores e vocais;
- Tiques causados por fármacos, consumo de drogas ou por outras condições médicas também não encaixam neste diagnóstico.
Características da doença
A Síndrome de Gilles de Tourette costuma surgir entre os cinco e os sete anos, começando por manifestar-se com tiques motores simples. Normalmente, os tiques começam por aparecer na região da cabeça e cervical, progredindo para o tronco e membros. “Os tiques motores surgem geralmente antes dos vocais e os simples antes dos complexos”, descreve a neurologista.
A doença vai progredindo com a diversificação e complexificação dos tiques, atingindo o auge entre os 10 e os 12 anos. A partir de então, os sintomas começam a diminuir gradualmente em termos de gravidade. Mais de metade dos doentes têm uma remissão completa dos sintomas ou mantêm apenas tiques ligeiros que não incomodam.
No entanto, há uma percentagem de casos em que a doença agrava com o tempo, podendo ser marcada pelo desenvolvimento de tiques “malignos”, que afetam a vida social e profissional do paciente. “Os fatores que diferenciam estes dois grupos ainda são desconhecidos, mas há estudos que mostram que tiques mais graves, comorbilidades não tratadas, stresse psicossocial e depressão na infância estão associados a um pior prognóstico.”
Sabe-se que a doença afeta cerca de 1% das crianças. Destas, mais de três quartos são de sexo masculino. Há ainda vários estudos que demonstram uma componente genética, apesar de ainda não ter sido identificado nenhum gene associado diretamente à doença.
Por vezes, o problema não surge sozinho. “Esta síndrome está frequentemente associada a comorbilidades, como a perturbação obsessivo-compulsiva, a perturbação de hiperatividade e défice de atenção e a doença do espectro do autismo”, explica Sandra Castro Sousa.
Minimizar o impacto psicológico e social
É preciso ter especial atenção aos impactos psicológicos e sociais que a síndrome Gilles de Tourette pode provocar. “Sabe-se que crianças e adolescentes com esta síndrome sofrem mais frequentemente de sintomas depressivos, de ansiedade e de stresse comparativamente aos que não sofrem da doença”, alerta Sandra Castro Sousa.
Os tiques destas crianças podem provocar reações negativas nas outras pessoas, além de as tornar em potenciais alvos de bullying. Isto, por sua vez, tem um impacto negativo nos doentes: podem desenvolver problemas psicossomáticos, podem ver o seu desempenho escolar prejudicado, aumentando, inclusivamente, o risco do suicídio. Muitos jovens acabam por evitar várias atividades sociais e de entretenimento, isolando-se.
Assim, além do tratamento dos tiques, é fundamental que as pessoas à volta saibam comportar-se, de forma a não exacerbar o problema. “Formas de psicoeducação, sobretudo em âmbito escolar, através da sensibilização da população com recurso a campanhas de informação e desestigmatização”, indica a especialista, são ferramentas importantes para melhorar o bem-estar dos doentes.
Individualmente, cada pessoa deve comportar-se de “forma natural, como se comportaria com uma criança que não tem esta síndrome”, sublinha a médica. Até porque, acrescenta Sandra Castro Sousa, quando se observa uma criança durante um episódio de tiques, esta atenção dirigida pode exacerbar o episódio.
Por outro lado, “mudanças ou interrupções da aula, como resposta aos tiques e à perda de controlo comportamental, podem ser entendidas como castigos e devem ser evitadas.”
Terapias e tratamentos farmacológicos
Existem terapias eficazes que permitem aos pacientes controlarem e evitarem os tiques, como o treino de reversão de hábitos. Esta terapia é ensinada em dois passos: o treino da consciência do tique e o da resposta competitiva.
O treino da consciência do tique permite ao paciente reconhecer os sinais precoces do tique e o impulso premonitório. Depois de conseguir identificar o sinal, passa a treinar uma resposta que compete com o tique e que passa por um “movimento ou vocalização voluntários que são incompatíveis com o tipo de tique que se iria iniciar”, explica a neurologista. Desta forma, o paciente pode evitar o tique.
Já a intervenção comportamental para tiques baseia-se num treino de relaxamento e numa aprendizagem para “identificar e mitigar as situações que podem exacerbar a frequência e a gravidade dos tiques.”
No caso em que as terapias comportamentais são ineficazes, não estão disponíveis ou não são uma opção para o paciente, é possível recorrer-se a fármacos — os dois grupos principais são os agonistas alfa-adrenergicos e os antidopaminergicos — que atuam na supressão dos tiques, com taxas de eficácia variáveis e potenciais efeitos colaterais.
A botulina, uma toxina que causa uma paralisia muscular localizada, “também tem sido apontada como um tratamento eficaz em tiques motores focais e tiques vocais sem efeitos adversos sistémicos”, termina a especialista.