COVID-19. Podemos mesmo falar em doença endémica?
11 de março de 2020. A COVID-19, doença respiratória cujo primeiro caso surgiu no final de 2019, em Whuan, na China, é declarada pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Pouco depois, é quase como se o mundo tivesse fechado as suas portas: os governos de diferentes países decretaram estados de emergência, que resultam em confinamentos compulsivos, nos quais várias liberdades são interrompidas. Os restaurantes e as lojas fecharam. As consultas não prioritárias foram suspensas. Os ajuntamentos na rua são proibidos. Instala-se o teletrabalho. Deixamos de poder sair de casa. A vida, como a conhecemos, fica em suspenso.
Em dois anos de SARS-CoV-2, o mundo já viveu cinco vagas distintas, tendo assistido à mutação de um vírus, que foi de Alfa a Delta (a que teve consequências mais dramáticas, fazendo disparar os internamentos em cuidados intensivos e número de mortes) e, agora, a Ómicron. Esta nova mutação do vírus, apesar de mais contagiosa (levando a um número de casos positivos inédito, até então), demonstrou ser também a menos agressiva, provocando uma diminuição drástica nos internamentos por doença grave e, consequentemente, de óbitos.
Nestas circunstâncias, que permitiram levantar regras e aliviar restrições, começa a falar-se de doença endémica. Mas o que significa isto ao certo? Será este o termo mais correto?
Epidemia, pandemia, endemia
Antes de falarmos de doença endémica, devemos recordar os conceitos de epidemia e de pandemia. "Uma epidemia consiste na ocorrência de uma doença ou de uma condição que afeta uma população de uma ou de várias regiões geográficas, com uma incidência acima do expectável", começa por explicar António Figueiredo, Coordenador da Comissão de Controlo de Infeção da Lusíadas Saúde.
A pandemia, explica-nos, pode ser considerada uma epidemia com passaporte: "Tem as mesmas características, mas atinge várias partes do globo, ultrapassando barreiras geográficas. Daí que a OMS, em março de 2020, tenha declarado a COVID-19 uma pandemia."
Com a variante Ómicron e consequente diminuição no número de internamentos e mortes, em fevereiro de 2022, vários países da Europa anunciaram que passariam a tratar a COVID-19 como uma endemia. E nos media começaram a surgir anúncios de que o SARS-CoV-2 passaria a configurar uma doença endémica.
Só que, se formos à definição de endemia, vemos que não será exatamente assim. É que endemia pressupõe que a doença só existe num determinado espaço geográfico e a COVID-19 ainda existe em torno de todo o globo.
Segundo António Figueiredo, uma endemia consiste na ocorrência de uma doença ou de uma condição dentro de uma determinada população ou área geográfica”. Trata-se, então, de "uma situação característica de uma determinada população, ocorrendo com uma incidência constante."
E acrescenta: "Quando falamos de endemia estamos a referir-nos a uma situação na qual a quantidade de casos novos de doença, nas regiões e áreas geográficas em que se mantenha presente, vai existir ou ocorrer com uma frequência constante. E parece que estamos a aproximarmo-nos disso, mas ainda não podemos dizer que se comporta como se fosse uma doença endémica, porque ainda afeta todo o planeta."
Para António Figueiredo será mais correto dizer que, no futuro, a COVID-19 passará a configurar uma doença sazonal, tal como a gripe.
Porque é que a COVID-19 se poderá transformar numa doença sazonal?
Para o especialista, os dados fornecidos pelo passado são aqueles que permitem fazer uma previsão do futuro. E, no que respeita à COVID-19, observou-se em dois invernos consecutivos uma subida substancial dos casos, seguida de uma descida nas estações mais quentes.
"A COVID-19 parece ter o comportamento semelhante ao de uma doença viral sazonal. Vejamos o caso da gripe, que é o vírus influenza. Tem características específicas que fazem com que a sua incidência seja superior no inverno: é mais resistente nas estações frias, que é também a altura em que se criam mais aglomerados de pessoas, aumentando o potencial de contágio. Estas condicionantes fazem com que tenha mais expressão nos meses com temperaturas mais baixas, que é uma altura em que, tradicionalmente, há mais sintomas respiratórios."
A evolução da COVID-19, prevê o médico, irá traduzir-se na presença de "mais um vírus de transmissão respiratória, com uma incidência que se mantém estável e que poderá ser favorecida por algumas condições climatéricas, como as temperaturas baixas."
Mas não é já: "Ainda não chegamos lá, mas parece-me que estamos próximos disso.”
O papel da vacina
O desenvolvimento da vacina foi determinante no rumo da pandemia. "A vacina ajuda-nos em várias coisas. Em primeiro lugar, do ponto de vista de saúde, protege as populações mais suscetíveis à doença grave — idosos ou pessoas com comorbilidades, como hipertensão, diabetes, doenças oncológicas, entre outras — que desta forma estão mais protegidas da doença grave."
Além de proteger os mais suscetíveis, foi fundamental na forma como afetou as outras camadas da população: "A vacina fez com que indivíduos sem fatores de risco — jovens e sem comorbilidades — não desenvolvessem sintomas ou que desenvolvessem apenas sintomas ligeiros. Isto traduz-se numa carga viral mais baixa e, por isso, numa doença que é menos transmissível.”
Por último, António Figueiredo destaca o impacto no Sistema Nacional de Saúde (SNS): "Tudo isto teve consequências muito importantes naquilo a que chamamos de resiliência e sustentabilidade do SNS. Basta lembrar que a variante Delta — que nos afetou em 2021, numa altura em que a população não tinha o nível de imunização de hoje — quase nos aproximou de um ponto de quebra na capacidade do fornecimento de serviços de saúde, devido à ocupação nas camas de internamento e cuidados intensivos."
Como vai ser o futuro?
É impossível fazer uma previsão exata, mas há pistas que nos indicam o que é que veio para ficar e o que é que é passageiro.
"Nós temos de viver no novo normal e isto não é um cliché. A COVID-19 introduziu mudanças no comportamento e na cultura. E essas mudanças vieram para ficar algum tempo", começa por frisar o especialista. "Na China, já existia antes a cultura de andar com a máscara, sobretudo na altura de maior transmissibilidade dos vírus respiratórios. Isto faz parte da etiqueta respiratória e temos de nos habituar a utilizar equipamentos de proteção individual nas alturas em que há maior risco de transmissão. Temos de nos proteger a nós e aos outros."
Além da adoção da máscara, o especialista inclui ainda a utilização de álcool gel como parte dos hábitos que vieram para ficar: "Já faz parte do nosso dia-a-dia, portanto é expectável que, daqui para a frente, passemos a desinfetar mais as mãos, também como parte da etiqueta respiratória."
No que respeita aos períodos de isolamento por resultado positivo à COVID-19, António Figueiredo prevê um aliviar das medidas. "Face a alguns sintomas, compramos um teste e fazemos em casa. Se dermos positivo à COVID-19, avisamos a chefia e esperamos até que os sintomas passem. Ao fim de dois ou três dias, se estivermos bem, sem febre, sem tosse, sem sintomas que nos tornem contagiosos, voltamos para o trabalho, tal como deveria acontecer quando temos uma gripe."
Na opinião do especialista, os autotestes vão continuar a ser comercializados, mas os postos de testarem serão, gradualmente, extintos.
Por último, António Figueiredo lembra que com a COVID-19 também trouxe avanços positivos, mais concretamente, no que se refere à utilização da tecnologia para continuar a fornecer serviços de saúde. É o caso das teleconsultas ou da capacidade de monitorização de doentes à distância.
"A pandemia deu um impulso à transição digital em várias áreas, incluindo da saúde. É um aspeto para ficar e continuar a desenvolver. Nesta era digital, faz todo o sentido integrar as novas tecnologias na prestação dos cuidados de saúde. As duas últimas gerações nasceram na era digital, em contacto com a tecnologia. É um trabalho para continuar."
Com a colaboração de:
António Figueiredo, Coordenador da Comissão de Controlo de Infeção da Lusíadas Saúde