Surdez: como é ouvir pela primeira vez
"Sempre que uma criança ouve pela primeira vez a voz da mãe, e fica com aquele olhar de espanto e com um sorriso de descoberta... é impossível não sentir uma emoção muito grande", confessa Luísa Monteiro, coordenadora da Unidade de Otorrinolaringologia.
Com efeito, os implantes cocleares vieram revolucionar a vida de quem sofre de surdez severa ou profunda. Trata-se de um dispositivo eletrónico com dois componentes, um deles implantado dentro da cóclea (ouvido interno), o outro colocado na parte externa e que se assemelha a uma prótese auditiva. O componente externo transmite um sinal eletrónico para a parte interna, transformando o som em sinal digital e permitindo a escuta de sons a quem antes não ouvia.
Dos 12 meses aos 74 anos
Luísa Monteiro começou a fazer estas cirurgias em 2007, primeiro apenas a crianças e agora faz implantes quer a crianças quer a adultos: "Há muita gente, mesmo médicos de clínica geral e até otorrinolaringologistas, que pensam que os implantes cocleares têm como destinatário apenas as crianças. Não é verdade. Podem ser feitos idealmente dos 12 meses aos 2 anos, mas também podem ser feitos em adultos, desde que já tenha havido experiência auditiva. Ou seja: o implante faz-se apenas no caso de uma surdez pós-lingual. A criança mais pequena que já implantei tinha 12 meses e o adulto mais velho tinha 74 anos."
Um processo compensador
Esta é uma cirurgia complexa, que demora 3 a 4 horas, mas cujo pós-operatório é muito fácil: "Não dá dores, não dá vertigens e, geralmente, a pessoa tem alta no dia seguinte."
Depois da cirurgia, o implantado não fica logo a ouvir. Isso só acontece três semanas a um mês depois da intervenção, quando é colocado e programado o componente externo. "É preciso passar por um longo percurso de reabilitação, de aprendizagem auditiva e da oralidade, num trabalho de equipa que é fundamental", explica Luísa Monteiro.
"E o que é realmente gratificante é quando, anos depois, encontramos uma criança que implantámos a ouvir um concerto, a falar como se não tivesse qualquer problema auditivo, com um percurso escolar muito bom, perfeitamente integrada. Isso, sim, é realmente recompensador."
A responsabilidade de todos
Apesar da verdadeira revolução que esta cirurgia traz para a vida dos surdos severos ou profundos, há ainda um longo caminho a percorrer. Luísa Monteiro lastima que haja ainda poucos implantes cocleares a serem feitos e que cerca de 60 a 65% das crianças surdas escapem a este procedimento que lhes traria uma incomparável qualidade de vida: "Os fatores são múltiplos. Para começar, há poucos hospitais do Serviço Nacional de Saúde a fazerem implantes cocleares. Depois, pode haver muitas razões: ou porque vivem na província e os pais não estão despertos para esta possibilidade, ou porque o médico não considerou essa opção, ou porque lhes é posta uma prótese e assim ficam... serão muitas as causas, mas a sociedade tem que olhar para este problema. Devia haver linhas de referenciação destas crianças, para que o seu futuro não ficasse comprometido."
A médica chama ainda a atenção para o facto do Estado não comparticipar as pilhas e os componentes externos, que têm preços muito elevados, para muitos incomportáveis: "Além disso, são componentes que estão sujeitos à taxa máxima de IVA, que é 23%. Como se fosse um luxo. Como se não fosse indispensável para uma integração da criança na comunidade escolar e na sociedade em geral." No Hospital Lusíadas Lisboa, este ano deverá terminar com 13 a 14 implantes cocleares feitos a crianças e adultos. E Luísa Monteiro quer que, em 2015, o número seja superior. Porque o mundo é feito de sons e todos deviam poder escutá-los.
O caso do Daniel Lucas
Daniel Lucas nasceu com surdez profunda e teve direito, como têm todos os cidadãos, a um implante coclear comparticipado pelo Estado. Mas isso resolvia apenas parte do problema, uma vez que ele tinha surdez bilateral. Os pais do Daniel inventaram todo o tipo de iniciativas para angariarem dinheiro para o implante e, em quatro meses, conseguiram 32 mil euros, valor que permitia apenas comprar o aparelho, mas que não cobria toda a manutenção que um implante coclear acarreta.
Foi então que Luísa Monteiro, coordenadora da Unidade de Otorrinolaringologia do Hospital Lusíadas Lisboa, que tinha colocado o primeiro implante ao Daniel (quando ainda trabalhava no Hospital da Estefânia), decidiu avançar com uma proposta comovente à administração da unidade: ela e a sua equipa fariam a cirurgia abdicando dos honorários e o hospital oferecia o internamento e os recursos. A administração aceitou.
E a magia voltou a acontecer, tinha o Daniel quatro anos. Um ano depois da colocação do segundo implante, Daniel dizia já muitas palavras e até cantava e dançava. Mas seguia-se ainda muito trabalho pela frente, com a terapia da fala e todo o trabalho a ser desenvolvido na escola e em casa. Passaram dois anos e a mãe garante que esse trabalho deu frutos: “toda a gente o entende. Tem muito vocabulário e, mesmo quando diz uma palavra da forma errada, eu corrijo e ele acaba por conseguir repeti-la bem”, garante. Até chegar aqui, a família passou por momentos difíceis, mas hoje “não há palavras. Tem sido muito bom acompanhar a evolução do Daniel”.
Agora com seis anos prepara-se para entrar no primeiro ano escolar. O apoio da professora e da terapia da fala têm facilitado a sua “grande evolução”. Durante este período ficou igualmente definido que o problema era unicamente auditivo e não cognitivo. Demonstra até a sabedoria e curiosidade própria das crianças desta idade. “Às vezes, eu e o pai estamos a falar baixinho, de assuntos nossos, e ele faz logo perguntas que mostram que percebeu do que falávamos”, revela a mãe, sem esconder o orgulho de alguém que pensou que esse dia nunca chegaria.
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Revisão Científica
Dra. Luisa Monteiro
Coordenador da Unidade de Otorrinolaringologia