"O que eu já fiz pelo futebol"
Por Tiago Carrasco
Fotografia João Henriques
Sou um romântico incompreendido. Em abril de 2013, abdiquei de ver a partida decisiva da meia-final da Liga Europa, entre a minha equipa de futebol, o Benfica, e os turcos do Fenerbahçe, para ir buscar a minha namorada ao aeroporto de Faro e passar a noite a dois.
Foi uma manobra arriscada e muito questionada pelos meus amigos – afinal, era somente a nossa segunda ocasião juntos e perder um jogo histórico por causa de uma paixoneta podia, segundo eles, conduzir-me ao arrependimento eterno. Não foi assim. Aquela noite marcou o início de uma relação feliz e duradoura, recentemente contemplada com o nascimento de uma bebé.
Contudo, a minha namorada nunca reconheceu a minha prova de amor: “Fizeste o que tinhas a fazer. Queres que te agradeça por me teres escolhido a mim e não o futebol?” Queria, mas confesso que não tem muito cabimento. Na verdade, só recorro a esse trunfo nas acesas negociações para colocar um jogo imperdível à frente de qualquer outro plano ponderado para a mesma hora.
Tenho muita experiência nessa matéria, acumulada desde os primeiros romances na adolescência: implica boa capacidade de argumentação, persistência e capacidade de fazer concessões. Se há alguma atividade em que já perdi quase tanto tempo como a ver futebol, foi a explicar porque quero ver futebol.
Já não tenho qualquer ilusão de viver sem esta conflitualidade; mais, sei que vai aumentar com os anos. Ainda esta semana, acordei a minha filha com um berro quando Éderson, guarda-redes do Benfica, defendeu um penálti contra o Dortmund. Quando ela conseguir falar, vou ter de lhe explicar a razão da minha exaltação. Temo que não vá compreender. A culpa, como de costume, é do Benfica. Mas é sobretudo do meu pai.
Foi dele que herdei este fascínio pela bola, exacerbado pela primeira vez em que, com 8 anos, me levou a um estádio, empurrando-me para choradeiras diluvianas sempre que os resultados eram desfavoráveis. “Porque sofres assim se os jogadores é que ganham o dinheiro”, perguntava-me a minha mãe. E eu comecei a treinar a resposta a perguntas difíceis: “Eu não quero dinheiro, mãe, quero é golos.”
Por outro lado, o futebol fez de mim uma sumidade precoce em geografia; nunca tinha saído de Lisboa mas, graças às horas passadas a ver o Domingo Desportivo, sabia em que países ficavam Malmö, Graz e Split. Sabia que os jogadores com nomes acabados em “ic” eram jugoslavos e os “enko” eram muito provavelmente ucranianos. Hoje, quando viajo, sou capaz de começar uma conversa apenas com o nome de um futebolista desse país. Não acreditam? Experimentem dizer estas palavras mágicas na Nigéria: “Jay-Jay Okocha.”
Apercebi-me disso no percurso de 30 mil quilómetros que fiz de Lisboa à África do Sul, rumo ao Mundial 2010. O futebol une povos distantes. Quando comecei a trabalhar, uma nuvem carregada de dúvidas começou a pairar sobre o meu sofá, onde já se começava a desenhar o molde do meu corpo prostrado diante da televisão aos fins de semana. “Será que passo tempo a mais a ver desporto? Poderia aplicá-lo em atividades mais úteis para o meu cérebro?” Cheguei à conclusão que sim.
Passei a acompanhar apenas as partidas da minha equipa e os grandes jogos das competições europeias, dos Europeus e dos Mundiais. Ganhei tempo para ler, ver mais filmes e focar-me no trabalho. A pertinência do tempo despendido a seguir desporto na televisão não assombra apenas a mente de gente comum.
O escritor norte-americano Paul Auster e J.M. Coetzee, sul-africano que recebeu o Nobel da Literatura em 2003, dissertaram sobre o tema nas cartas que trocaram, publicadas na obra Here and Now. A dada altura, Coetzee confessa que largou os três livros que estava a ler para ficar a tarde toda preso a um jogo de críquete. Os dois autores discorrem então sobre o fascínio do desporto. Auster conclui: “A intensidade maníaca dos adeptos de desporto – não todos, mas um grande número – tem de vir de algum lado muito profundo da alma”, escreveu. “Há muito mais aqui do que diversão momentânea ou entretenimento.”
Ver futebol: Hobby de risco?
Ver futebol assiduamente pode acarretar riscos na vida financeira, social e sexual, mas pode também ser um hábito saudável, desde que seja moderado. O The New York Times noticiou recentemente um estudo que indica que os fãs incondicionais de desporto são menos atreitos a depressões. “É um passatempo que transmite prazer, alheamento do stresse diário e das preocupações do trabalho, e que por isso pode trazer vantagens para a saúde”, diz Gonçalo Proença, cardiologista do Hospital Lusíadas Lisboa.
“Está provado que existe uma relação íntima entre as emoções e o coração, ou seja, canalizar a paixão para algo, mesmo que seja o futebol, é positivo a nível cardiológico.” Estes efeitos positivos estão sujeitos a várias ameaças: fumar muito e beber álcool em excesso, entre outras. Existem ainda implicações a nível social. Um amigo contou-me que recentemente teve uma discussão com a companheira porque ela o apanhou a ver imagens de um jogo de futebol no telemóvel no decorrer do jantar do Dia de S. Valentim.
“O vivenciar de uma atividade desportiva só é positiva se não nos isolar de tudo. Quando nos alheia da família, deixa de ser uma prática socialmente saudável”, diz Gonçalo Proença. Noutro caso, mais grave, uma prima confidenciou-me que o marido, que tem sintomas depressivos, fica pior quando o campeonato está parado e não há jogos de futebol na televisão.
“As transmissões televisivas de futebol, como qualquer outra coisa, podem causar dependência. A dependência é uma condição psicológica e orgânica, que leva o indivíduo a recorrer sistemática e repetidamente a estratégias para obter prazer, revelando sintomas de abstinência quando não o faz”, explica o médico.
Os meus hábitos futebolísticos foram progressivamente tornando-se mais saudáveis. Deixei de retirar prazer de ver jogos sozinho e a encarar o jogo como uma ótima desculpa para conviver. Mirko Ercolani, um italiano a residir em Lisboa há 10 anos, passou a ser o anfitrião dos saraus desportivos. Nos verões de Euro e de Mundial, instala o televisor no quintal e abre as portas a todos os amigos, em redor de um braseiro onde assa bifanas e sardinhas.
O estabelecimento até já ganhou uma alcunha: o Sardini. “É muito melhor ver os jogos com amigos porque se partilham as emoções, comenta-se o jogo e posso aproveitar para desabafar se algo me preocupa”, diz Ercolani. Há cinco meses que não vou a Lisboa. Não vejo a hora de voltar a celebrar golos com os meus amigos no Sardini.
Tiago Carrasco é repórter desde 2004. Publica regularmente em jornais como o Expresso e o Público e em revistas como a Sábado e Notícias Magazine. Em 2010, viajou com dois amigos - um fotojornalista e um repórter de imagem - entre Portugal e a África do Sul, focando-se nas estreitas ligações entre o futebol e a sociedade em 23 países africanos, um projeto que daria origem ao livro Até Lá Abaixo e ao documentário Até Lá Abaixo - O Outro Lado do Mundial de África. Continua a escrever, frequentemente sobre futebol, principalmente o seu lado mais político, social e identitário.